sábado, setembro 25, 2004

As marteladas cegas no património e no serviço público da Tribulandia

Público
Sinais de Desagregação
Por MIGUEL SOUSA TAVARES


"1. Se o Estado abriu mão de um bem essencial, como é a energia pública, e a sua privatização representou mais dinheiro para os cofres públicos e tarifas mais caras para os consumidores;

Se o Estado abriu mão das telecomunicações fixas, colocadas, em situação de monopólio de facto, sob a alçada de uma empresa que presta o pior serviço telefónico e pratica os mais altos preços da Europa, fazendo do telefone um produto de luxo e aplicando as mais-valias na construção paulatina de um império mediático que começa a ameaçar a efectiva liberdade de imprensa;

Se o Estado se prepara igualmente para abrir mão das águas, entregando à gestão privada aquele que é o mais essencial dos serviços públicos;

Se o Estado se prepara igualmente para vender a TAP, que tão imprescindíveis serviços presta ao país e para cuja sobrevivência foi exigido um esforço sem precedentes aos contribuintes;

Se o Estado desistiu de administrar justiça, delegando as suas funções nos poderes corporativos judiciais, nada podendo contra o facto de haver quem espere dez ou vinte anos por uma sentença;

Se o Estado vai desistindo de administrar os próprios hospitais públicos, pagando fortunas a quem o faça em seu nome e sem resultados consensualmente melhores;

Se o Estado é incapaz de cobrar impostos a quem os não paga, compensando a sua inépcia com a agravação constante dos impostos dos que pagam;

Se o Estado é incapaz de cobrar os seus próprios créditos, preferindo vendê-los, com substancial desconto, a quem o faça;

Se o Estado é incapaz de modernizar e tornar funcionais os seus serviços administrativos, em cuja manutenção gasta 60 por cento da colecta fiscal;

Se, apesar disso, o Estado não valoriza os que o servem, preferindo o mau funcionalismo mal pago do que o bom funcionalismo bem pago;

Se o Estado não é capaz de exigir responsabilidades aos seus gestores públicos, que enriquecem com ordenados e pensões de luxo, enquanto as empresas definham;

Se o Estado não é capaz de garantir que os doentes sejam operados nos hospitais públicos quando necessitam e não quando há oportunidade;

Se, apesar disso, o Estado, representado pelo actual Governo, se propõe cobrar os serviços de saúde que presta, segundo um critério em que penalizará quem paga impostos e aliviará quem foge a eles;

Se o Estado não consegue garantir o ensino público a tempo e horas, porque, apesar de também ter delegado em empresas privadas a função de colocar os professores nas escolas, acaba a fazer as colocações "à mão", com funcionários recrutados "ad hoc";

Se, apesar de todos os avisos e de um ano inteiro de preparação, numa só semana de calor, o Estado é impotente para evitar que arda mais área do que no ano anterior, dando publicamente um espectáculo de total impotência, descontrolo e irresponsabilização em cadeia;

Se o Estado não consegue impedir que o património natural do país seja continuamente saqueado pelo conúbio de interesses entre construtores e autarcas, comendadores e financiadores dos partidos;

E se, apesar de tudo isto, o Estado gasta todos os anos 55 por cento da riqueza produzida no país, chegou a altura de colocarmos a pergunta óbvia: para que serve o Estado? Para que pagamos impostos? Para que elegemos um chefe de Estado? Para que votamos em eleições?

Se não querem mais o Estado, digam-no, escrevam-no, decretem-no. Terminem com as obrigações do Estado e com as obrigações para com o Estado. Vamos experimentar ser uma nação sem Estado. Com corporações e partidos. Logo se verá o que resta."

Muito bem Miguel de Sousa Tavares. Não resisto a publicar na íntegra esta sua parte do artigo. Pões o dedo nas feridas profundas deste país que se atola e desfaz do património comum. Em nome de que santa? A bem de quem? Do povo não será certamente.


Sem comentários: