terça-feira, dezembro 23, 2003

CONVERSA INFORMAL COM O MENINO

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE



Menino, peço-te a graça
de não fazer mais poema
de Natal.

Uns dois ou três, inda passa...
Industrializar o tema,
eis o mal.

Como posso, pergunto, o ano
inteiro, viver sem Cristo
(por sinal,
na santa paz do gusano)
e agora embalar-te: isto
é Natal?

Os outros fazem? Paciência,
todos precisam de vale...
Afinal,
em sua reta inocência,
diz-me o burro que me cale,
natural.

E o boi me segreda: Acaso
careço de alexandrino
ou jornal
para celebrar o caso
humano quanto divino,
hem, jogral?

Perdoa, Infante, a vaidade
a fraqueza, o mau costume
tão geral:
fazer da Natividade
um pretexto, não um lume
celestial.

Por isso andou bem o velho
do Cosme Velho, indagando,
marginal,
no seu soneto-cimélio,
o que mudou, como, quando,
No Natal.

Mudei, piorei? Reconheço
que não penetro o mistério
sem igual.
Não sei, Natal o teu preço,
e te contemplo, cimério,
a-pascal.

Vou de novo para a escola,
vou, pequenino, anular-me,
grão de sal
que se adoça ao som da viola,
a ver se me desperto um carme
bem natal.

Não será canto rimado,
verso concretista, branco
ou labial:
antes mudo, leve, agrado
de vento em flor no barranco,
diagonal.

Não venho à tua lapinha
pedir lua, amor ou prenda
material.
Nem trago qualquer coisinha
de ouro subtraído à renda
nacional.

Nossa conversa, Menino,
será toda silenciosa,
informal.
Não se toca no destino
e em duros trchos de prosa
lacrimal.

Não vou queixar-me da vida
ou falar (mal) do governo
brasilial.
Nem cicatrizar ferida
resultante do meu ser-no-
mundo actual.

Deixa-me estar longamente
junto ao berço, num enleio
colegial.
(Áquele que ´é menos crente,
um anjo leva a passeio:
é Natal.)

Prosterno-me, e teu sorriso
sugere, menino astuto
e cordial:
Careço de ter mais siso
e vislumbrar o Absoluto
neste umbral.

Sim, pouco enxergo. Releva
ao que falta a poesia,
e por al.
Gravura em branco, na treva:
a treva se aclara em dia
de Natal.

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